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Claro como a água

Um blog para os apaixonados por livros, ou simplesmente para quem procura um livro para ler

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OPINIÃO | As Intermitências da Morte

14.02.16

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 Título: As Intermitências da Morte

Autor: José Saramago

Ano de Publicação: 2005

Editora: Porto Editora

 

Ninguém escreve assim, a escrita de Saramago é genial e é motivo mais do que suficiente para ler as suas obras. O tema desta obra é interessante, a narrativa começa com "No dia seguinte ninguém morreu" e a partir daí o autor desenvolve todas as consequências (mesmo as mais inimagináveis) decorrentes da suposição de que a morte resolveu "tirar férias".

 

"O que aí nos vem em cima é o pior dos pesadelos que alguma vez um ser humano pôde haver sonhado, nem mesmo nas escuras cavernas, quando tudo era terror e tremor, se terá visto semelhante coisa (...) se quer que lhe falemos com franqueza, de coração nas mãos, antes a morte, senhor primeiro-ministro, antes a morte que tal sorte."

 

As famílias não sabem o que fazer aos seus familiares que se encontravam à beira da morte, as agências funerárias e as seguradoras temem ir à falência, ainda que por motivos contrários, os hospitais e os lares não têm mais recursos para receber os eternos clientes e até a igreja teme a sua sustentabilidade alegando que sem morte não há ressurreição.

 

Um outro tema abordado por Saramago e que também deriva da "inexistência da morte" é a velhice. Fiquei particularmente comovida com uma passagem do livro em que um homem com alguma idade e incapacitado se vê obrigado a ir viver com o filho, a nora e o neto. O filho ordena ao homem que vá comer para a soleira da porta para não sujar a casa. Ao ver a forma como o pai trata o avô, o neto resolve construir uma tigela "para quando o pai for velho e lhe tremerem as mãos, para quando o mandarem comer na soleira da porta, como fizeram ao avô", as palavras do miúdo foram santas aos ouvidos do pai. Quando chegou a hora da ceia "por suas próprias mãos o ajudou a sentar-se na cadeira, por suas próprias mãos lhe levou a colher à boca, por suas próprias mãos lhe limpou suavemente o queixo, porque ainda o podia fazer e o seu pai querido já não."

 

Já a história leva algum avanço quando Saramago nos apresenta a morte. Propositadamente não vou revelar muito sobre esta personagem, quero apenas escrever que a forma como Saramago descreve o comportamento e toda a ação em torno da morte é soberba! Aqui fica uma pequena amostra:

 

"O homem deitou água para um copo e bebeu. O cão apareceu nesta altura, matou a sede no bebedouro ao lado da porta que dá para a porta do quintal e depois levantou a cabeça para o dono. Queres sair, claro, disse o violoncelista. Abriu a porta e esperou que o animal voltasse. No copo tinha ficado um pouco de água. A morte olhou-a, fez um esforço para imaginar o que seria ter sede, mas não o conseguiu. (...) O homem tapou-se até o pescoço, tossiu duas vezes e daí a pouco entrou no sono. Sentada no seu canto, a morte olhava. Muito mais tarde, o cão levantou-se do tapete e subiu para o sofá. Pela primeira vez na sua vida a morte soube o que era ter um cão no seu regaço."

 

Foi bom ler Saramago, já tinha saudades da sua escrita e da ironia que transporta para as suas obras. É uma história com passagens que nos levam à reflexão, o meu exemplar está cheio de marcações 

Como diz José Saramago: "De deus e da morte não se têm contado senão histórias, e esta não é mais que uma delas." mas que vale muito a pena!

 

Classificação no Goodreads: 4/5